quinta-feira, 21 de julho de 2011

Pregador do sertão
Quem era Frei Damião, o milagreiro que atacava
o beijo, a minissaia e punia os pecadores
Silvania Dal Bosco

 Foto: Eduardo Queiroga / Ag. Lumia

O Brasil foi pego de surpresa, na semana passada, por uma manifestação de religiosidade coletiva como fazia muito não se via. A cena ocorreu no Recife, onde dezenas de milhares de devotos formavam fila nas ruas para dar um último adeus ao frade Damiano de Bozzano, o Frei Damião, morto aos 98 anos. Eram pessoas simples e pobres, que o aclamavam como santo, entoavam cânticos, faziam relatos de seus milagres e passaram longas horas em pé na esperança de tocar seu corpo. Muitas delas vinham de cidades distantes do sertão nordestino e, depois de longa viagem em ônibus precários, ficaram até duas noites ao relento, na vigília que precedeu o enterro. A comoção surpreendeu não só o Brasil globalizado, ciente das novidades do final do século. A cúpula católica permaneceu, salvo exceções, num silêncio constrangedor (veja ensaio de Roberto Pompeu de Toledo). "Essa despedida deu um banho espiritual no povo e reforçou a fé na Igreja", afirmou, por exemplo, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, que veio a conhecer o capuchinho corcunda no leito de morte.
Hospitalizado dezenove vezes nos últimos seis anos, Frei Damião passou dezenove dias entre a vida e a morte. No Hospital Português do Recife, enquanto os médicos faziam relatos científicos, esclarecendo que não havia esperança de cura, do lado de fora centenas de pessoas permaneciam firmes, rezando e cantando hinos religiosos, esperando em Deus por um milagre. Estava em morte cerebral desde o dia 27, mas durante quatro dias os médicos o mantiveram na UTI com a ajuda de aparelhos. No seu derradeiro dia, recebeu quatro vezes a extrema-unção -- o sacramento ministrado aos enfermos e moribundos. Foi declarado oficialmente morto no sábado 31 de maio.
No domingo, o corpo do capuchinho foi embalsamado no Instituto de Medicina Legal e levado para a Basílica da Penha, no centro da capital pernambucana. Durante os três dias de velório, os fiéis formaram filas de 5 quilômetros para entrar na igreja. Eram quatro horas de espera para ficar apenas dez segundos em frente do caixão. Diante do corpo, os crentes choravam e erguiam retratos, camisas, fitas, orações e até garrafas de água para que fossem abençoados. O material era comprado na praça em frente da igreja, a preços de ocasião: 3 reais os objetos mais caros. Na quarta-feira, um corredor humano de 8 quilômetros acompanhou o caixão até o Estádio do Arruda. Calcula-se que 300.000 pessoas tenham ido ao hospital, à Basílica ou ao estádio.
No fogo do inferno -- Nascido na pequena cidade de Bozzano, no norte da Itália, como Pio Gianotti, em 1898, Frei Damião recebeu seu novo nome quando foi ordenado frade, em 1923. Filho de camponeses, ingressou aos 12 anos na Ordem dos Capuchinhos. Em 1931, desembarcou de um navio no Recife e começou sua pregação na cidade de Gravatá, a 85 quilômetros da capital. Em 66 anos de missão pelo Nordeste, preferiu o sertão para disseminar sua fé. Orador de recursos, às vezes atraía multidões. Falava sobre os mandamentos da Igreja, o inferno, o purgatório, o céu, a morte e o juízo final. O que o diferenciava era o contorno ameaçador e apocalíptico de sua mensagem. Qualquer pecado seria castigado com o fogo do inferno. Para boa parte do clero, Damião era um embaraço, o que havia de mais atrasado na face da Terra. "Quem não acredita em Nosso Senhor Jesus Cristo vai para o inferno de cabeça para baixo", pregava, com sotaque italiano. E os fiéis acreditavam e gostavam do frade. "Eu apenas prego o Evangelho, ensinando o caminho do céu, convertendo almas e purgando os pecados da Terra", respondia Damião quando lhe perguntavam por que não se modernizava.
A Igreja que moldou a crença de Frei Damião foi construída com base no Concílio de Trento, de 1563, inspirado na doutrina medieval, que era implacável. "O matrimônio só é quebrado por morte: quem deixar o casamento para se casar com outro no civil estará no inferno de cabeça para baixo", ensinava ele, combatendo qualquer desquite, divórcio, todas as formas de dissolução do sacramento. Outra de suas frases prediletas: "A dança é um elemento de perdição. Quando um homem e uma mulher se juntam para dançar, não pode sair nada de bom. Sobrevêm os maus pensamentos, os desejos pecaminosos, o pecado". Se o público fosse jovem, dizia: "Um beijo dado no rosto da namorada é como um beijo dado numa parenta, não tem nada de mais, estão ouvindo? Agora, um beijo na boca, um beijo de língua, isso é pecado". As vestes femininas eram um problema. Ele não gostava de minissaia ("Não presta. É causa de pecados. Muitos homens já perderam a cabeça por causa desse exagero das mulheres.") nem de calças compridas. As mulheres que as usassem também arderiam no inferno.
Milagres -- Na década de 60, a Igreja mudou de orientação, mas Frei Damião não quis saber dos ensinamentos do Concílio Vaticano II, que pretendia que os padres adotassem um comportamento mais contemporâneo e permeável aos problemas sociais. Foi então proibido de fazer pregação em várias dioceses do Nordeste. Quando não estava falando, Frei Damião passava até doze horas ouvindo pecados. "Todos devem confessar seus pecados, grandes ou pequenos. Quem não tiver pecado novo repete os já confessados", exortava. Mais do que por falar duro e ouvir com paciência, Frei Damião movimentou multidões em vida e na morte em função dos inúmeros milagres que se atribuem a ele. O Instituto de Teologia do Recife catalogou mais de oitenta.
Conta-se que, em 1936, em Araripe, no Ceará, Damião teria recebido uma senhora de nome Elvira. Ela foi pedir conselho a respeito do marido, que vivia com outra mulher. O frade mandou chamar o marido e pediu-lhe que deixasse aquela vida. "Não deixo", respondeu o adúltero. E o frade questionou: "Deixa não?" Com quinze dias, o homem, que era forte e sadio, teria morrido. Outro milagre. No interior de Pernambuco, o frade convidou um fazendeiro a se confessar. O homem não aceitou, dizendo que poderia confessar-se noutra hora. No dia em que Damião estava arrumando a sua bagagem para viajar, um portador foi chamá-lo porque o fazendeiro estava morrendo. O frade mandou que o vigário da paróquia atendesse ao chamado. Quando o padre chegou, o fazendeiro estava morto.
Os milagres atribuídos a Frei Damião podem ser classificados em três categorias. Havia os milagres de salvação, como a cura, a conversão e o sucesso repentino. Outra categoria era formada pelos milagres de domínio da natureza, pois, garante-se, Frei Damião fez chover mais de uma vez. Os milagres mais impressionantes eram os do castigo, pois ele decretaria a morte súbita, como no caso do marido infiel, ou transformaria pessoas em animais. Em Juazeiro do Norte, no Ceará, pai e filha conviviam feito casal. Frei Damião chamou-os a sua presença: "Separe-se desta filha ou os dois estão condenados ao inferno". O homem recusou. "Separe-se dela ou faço você berrar como um bode e ela como uma cabra", advertiu Damião. O homem insistiu na recusa. Eis que passaram a berrar como bode e cabra.
A vida austera que levava suscitava ainda mais o imaginário popular. Muitos acreditam que ele não comia nem dormia. Através da literatura de cordel, os poetas populares trataram de divulgar seus feitos. Damião tornou-se um mito. Não surpreende que os políticos vissem nele a capacidade de realizar outro milagre: garantir eleições. Muitos tiraram fotos ao seu lado, como o vice-presidente Marco Maciel ou o prefeito do Recife, Roberto Magalhães. O missionário nunca pediu votos. Em 1989, Damião subiu ao palanque do candidato Fernando Collor. Na semana passada, Collor deixou o auto-exílio em Miami para aparecer ao lado do padre. Collor pediu para abrir o caixão e beijou a testa do velhinho. Depois, secou as lágrimas com um lenço.
Dom José Cardoso Sobrinho, entusiasmado com a comoção popular, prometeu acelerar em Roma o processo de beatificação do frade. Ele não tem esse poder, mas os fiéis gostaram de ouvir. Os capuchinhos já estão preparando os documentos para enviar a Roma. O processo passará pelo árduo caminho da burocracia vaticana e não há garantia nem tempo previsto para a canonização. Para os nordestinos, entretanto, isso vale muito pouco. No sertão, Frei Damião não precisa receber a aprovação da Igreja Católica. Ele já é santo e faz milagres. Seu túmulo, no convento de São Félix no Recife começou a ser visitado por romeiros.
Com reportagem de Marcos Gusmão
Copyright © 1997, Abril S.A.

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